quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Gaúcho macho e grosso

por Rafael Bán Jacobsen


Os leitores do site Vista-se devem ter percebido que andei ausente nos últimos tempos. Sim: faz quase um mês que não apresento uma nova coluna. O motivo é nobre: estava concluindo o meu novo romance, Uma Leve Simetria, que será lançado em março.

Escrever um livro dá um trabalho dos diabos, e, quando você acha que acabou, aí vêm as intermináveis revisões, diagramações, escolha de capa e projeto gráfico, enfim. A boa notícia é que já está quase tudo pronto. A má notícia é que, mais uma vez, meu livro não tem nada a ver com vegetarianismo, alimentação ou direitos animais.

A razão é simples: eu seria incapaz de, em um texto literário, ficcional, dosar o meu ativismo; com certeza, lá pelas tantas, meu texto deixaria de lado a proposta estética, o cuidado com a linguagem, a construção do enredo e das personagens, para descambar em panfletagem barata e da pior qualidade. Infelizmente, eu não sou Regina Rheda, a consagrada escritora que, em 2008, lançou o livro Humana Festa, uma obra muito original, cuja temática é, exatamente, a hegemonia dos humanos sobre os demais animais. Os protagonistas são veganos conscientes, e o livro nos coloca a seguinte pergunta: até quando um vegano será considerado radical, e um humano que explora animais, sensato? Parabéns a quem leu o livro. Quem não leu saia da frente do computador agora e vá, de imediato, à livraria mais próxima.

Mas o que importa aqui é o seguinte: Regina tem competência para fazer literatura e ativismo ao mesmo tempo. Eu não. Mas tem um “prêmio de consolação” aos muitos que sempre esperam ver contemplada a temática vegetariana nos meus escritos: há uma personagem vegetariana em Uma Leve Simetria, e não é uma personagem qualquer – trata-se do protagonista-narrador Daniel Lipman. Àqueles que já estão animados, cabe um alerta: o Daniel, além de não fazer nenhuma defesa explícita da causa, não é, provavelmente, a imagem mais maravilhosa que se poderia pintar de um vegetariano aos olhos do mundo. Ele é um garoto cheio de qualidades: além de ser judeu e vegetariano, é extremamente inteligente e sensível, dono de um enorme coração; porém, vive em crises existenciais, tem tendências depressivas e, de acordo com um amigo psiquiatra que leu o texto, apresenta um nítido quadro de histeria. Mas o “pior” vem agora. Daniel tem uma característica que não é nem defeito e nem qualidade (é simplesmente isso, característica), mas que pode acabar reforçando um dos estereótipos mais frequentemente associados ao vegetarianismo, especialmente aqui pelas bandas do Rio Grande do Sul: Daniel é um menino que gosta de meninos.

Confesso que estou temeroso com isso, pois, sendo eu vegetariano e escrevendo sobre um vegetariano homossexual, posso estar dando munição ao inimigo, isto é, àquelas pessoas preconceituosas que se saem com máximas do tipo: “Tá vendo? Eu disse: vegetariano é tudo gay.” Pior ainda, posso acabar sendo considerado um traidor do movimento por ter fomentado esse estereótipo no inconsciente coletivo. Por tais razões, pensei, mais de uma vez, em omitir esse fato a respeito do Daniel (o fato de ele ser vegetariano, não de ser homossexual), cogitei até incluir cenas em que ele aparecesse banqueteando-se com costelas mal passadas e suculentas chuletas; contudo, desisti e resolvi correr o risco de juntar as duas características no mesmo indivíduo, pois, sendo tão inteligente, observador e sensível, o Daniel não tinha como ser onívoro. Ou seja: na minha cabeça, o fato de Daniel ser vegetariano é um corolário de um intelecto e um coração plenamente desenvolvidos, e não um corolário de sua orientação sexual. Nada a ver uma coisa com a outra. Resta-me, agora, rezar para que os leitores entendam isso. Pena que a grande maioria dos leitores seja bem menos sagaz do que nós, escritores, gostaríamos que fosse.

E se há um lugar no mundo onde eu corro imenso risco de ser mal entendido é, por uma dessas ironias do destino, exatamente o lugar onde nasci, cresci e vivo: o Rio Grande do Sul, celeiro o conservadorismo, da tacanhice e do preconceito (antes que me joguem pedras: o estado tem, sim, muitas coisas boas, mas, hoje, estou com vontade de falar das coisas ruins – algum problema?). Como afirma a cronista gaúcha Martha Medeiros em um dos textos de seu livro Topless:

“O gaúcho não gosta de mudar de colégio, de bairro, de clube. Olha feio para os vegetarianos, é sarcástico com mulheres independentes, debocha de gays e não frequenta lugares ecléticos. Não todos, mas muitos são assim, principalmente aqueles que só olham para o próprio umbigo.”

Martha está certa: gaúcho olha feio para os vegetarianos, porque, aqui, masculinidade e carnivorismo são quase sinônimos. Um dito popular do meu querido estado afirma: “Gaúcho macho e grosso não come carne, rói osso!”. Esse aforismo já seria mais do que suficiente para comprovar a conexão que a cultura gaúcha, tacitamente, estabelece entre deglutir pedaços de animais trucidados e ter hombridade; todavia, apresentarei mais alguns indícios do fato apenas pra deleite do leitor.

Um amigo meu, gaúcho, nascido no interior, em região eminentemente pecuarista e churrasqueira, deixou sua casa e foi estudar em Porto Alegre. Algum tempo depois, passou quase dois anos na Europa e, claro, voltou com a cabeça virada – tornou-se vegano. Resultado: seu pai, lá na fazenda, virou, de imediato, a piada da região. Era obrigado a escutar em todos os churrascos que promovia: “E aí, Fulano? Como é que está o teu filho? Ainda naquela frescura de não comer carne?”. Então, pesaroso, o pai de meu amigo respondia: “Sim, mas, pelo menos, não é veado.” Um horror.

Quem ainda duvidar do elo implícito que, no senso comum sulista, liga caráter ao hábito de comer carne pode dar uma olhada nas dicas de temas que o Movimento Tradicionalista Gaúcho deu, em 2005, para o desenvolvimento de quadros para o Desfile da Semana Farroupilha (quem não tiver ideia do que é isso pode descobrir lendo minha crônica O Sentido da Existência no próprio site Vista-se). Um dos temas elencados pelos tradicionalistas foi a culinária gaúcha, assim abordada:

“O homem é o que come. Toda a história da humanidade, ao longo dos tempos, fala dos pastores cavaleiros nômades, comedores de carne, agressivos e dominadores, valentes, leais e francos. O uso do cavalo parece transmitir uma psicologia especial ao cavaleiro. Tártaros, mangóis, cossacos, beduínos, andaluzes, campinos, cowboys, charros, llaneros, huasos, vaqueiros, boiadeiros, pantaneiros e gaúchos. Todos são irmãos, todos são fundamentalmente iguais, todos são ferozes de pátria e de fronteira. E todos comem carne, o que parece dar a todos uma saudável agressividade, um jeito valente de encarar a vida.”


O texto é, do início ao fim, uma pérola que dispensa grandes comentários, mas cabe ressaltar o trecho que justpõe “comedores de carne, agressivos e dominadores” aos adjetivos “valentes, leais e francos”, quase como se fossem sinônimos, ou, ao menos, características diretamente correlacionadas. No meu dicionário pessoal, bem como no de qualquer pessoa minimamente sensata, comer carne é, praticamente, a antítese da valentia, agressividade é antônimo de lealdade, e dominação é o oposto de franqueza. Não há nada mais fácil (e covarde) do que matar seres indefesos, seja para comer seus músculos ou para o que for. Não há como estabelecer laços de lealdade com indivíduos agressivos, pois a agressividade é, por natureza, explosiva e de difícil controle – como confiar, então, em alguém cuja fúria, mais cedo ou mais tarde, imprevisivelmente, pode se voltar contra você mesmo?¹ Não há forma franca ou honesta de exercer dominação, pois o dominador estará, sempre, em posição de vantagem sobre o dominado, e, onde não há igualdade, não há transparência nas relações. O que resta, então, a comedores de carne, agressivos e dominadores? Exatamente o que o texto coloca: a ferocidade de pátria e de fronteira, o bairrismo, o nacionalismo exacerbado, as guerras estúpidas (o que é quase um pleonasmo), o Revolução Farroupilha, as Guerras Mundiais, os foguetes em Gaza. Tudo muito saudável.


Antônio Augusto Fagundes, popularmente conhecido no Rio Grande como Nico Fagundes, é um dos mais renomados e incensados ícones do tradicionalismo gaúcho. Formado em Direito, pós-graduado em História do Rio Grande do Sul e mestre em Antropologia Social, é pessoa reconhecida na cultura de nosso estado, premiado incontáveis vezes como poeta, novelista, compositor, autor e ator de teatro, televisão e cinema. Ele também endossa a importância dos hábitos alimentares na formação de nosso povo e a relevância da culinária típica (leia-se aqui carne e mais carne, de todos os tipos) na afirmação da identidade gaúcha. Em sua coluna no jornal Zero Hora, no dia 19 de fevereiro de 2007, Nico Fagundes tratou exatamente desses relevantes temas:

“A cozinha gaúcha é a mais desconhecida das cozinhas regionais brasileiras. No entanto, é a mais rica, a mais variada, com mais de 200 pratos catalogados. Eu, particularmente, gosto de arroz com galinha. Quando cozinho para mim e para os meus, preparo um arroz com galinha como o que minha mãe preparava lá no Alegrete. É assim: mata-se uma galinha campeira, dessas de pátio, comedoras de milho e que ciscam no terreiro atrás de minhoca. Há várias maneiras de se matar a galinha: eu esquento a água e torço o pescoço dela, que fica corcoveando atirada no pátio, curiosamente atraindo a atenção sexual dos galos do terreiro que se lançam furiosamente sobre a ave agonizante.”²

Essa belíssima e refinada alusão ao clássico binômio amor & morte (ou Eros & Thanatos, para os íntimos), com a imagem da galinha agonizante sendo seviciada pelos galos, além de ser digna dos maiores poetas dos fundões do Rio Grande do Sul, é bastante reveladora: deixa ainda mais evidente o tom de frenesi quase erótico em que a cena de matança é narrada, o mesmo tom em que os gaudérios costumam narrar suas conquistas amorosas ou suas brigas de facão. Matar bichos para comer, conquistar mulheres e brigar com outros machos: partes de uma mesma lógica ilógica de pseudovalentia e hombridade de faz-de-conta. Alguns podem pensar que exagero. Não é verdade. Basta ver como o texto prossegue:

“Quando ela morre, mergulho-a num balde com água fervendo. Depois de um tempo, depeno a galinha completamente. Depois, acendo no chão uma chamarada de gravetos ou papelão para queimar as últimas penugens restantes. Então, corto a metade da cabeça com o bico, as patas e um pedacinho em cima da sambiqueira, e tudo isso vai fora. Abro a galinha pelo fio do lombo e saco-lhe as vísceras e aproveito apenas a moela, o fígado e o coração. O resto vai fora. A carcaça será então lavada cuidadosamente e dividida em partes; o pescoço, as pernas, o peito com jogador e tudo, o rabo e o que resta divido em quatro partes.”

A macabra aula de culinária, que faz Jack, o Estripador, e Chico Picadinho parecerem tão bobinhos e fofos quanto os Teletubbies, estende-se por mais alguns parágrafos, mas vamos parar por aqui. Difícil acreditar que alguém que, de fato, possua inteligência, nobreza e coragem vá dedicar um texto inteiro para descrever, com tão descarado orgulho, uma cena de matança a sangue frio e com requintes de crueldade. Mas não sei o que é mais grave: escrever tal tipo de coisa, publicar tal tipo de coisa ou ler tal tipo de coisa e achar normal. Porque essa é a triste verdade: um sujeito escreveu, os editores do jornal provavelmente adoraram, e o povo, em sua maioria, salivou com a “receita”. Eis a cultura (ou falta de cultura) em que estamos imersos.

A índole gaúcha, com seus valores de tradição, “saudável agressividade” e lealdade, fica melhor caracterizada por suas contradições. Como vimos, no texto do Movimento Tradicionalista Gaúcho, foi dito que “o uso do cavalo parece transmitir uma psicologia especial ao cavaleiro”. Eu poderia me deter e argumentar sobre como o emprego da palavra “uso” aqui já revela a essência da relação do gaúcho com os animais: a exploração (o gaúcho usa o cavalo, usa o facão, usa a bota – são todos objetos para diferentes fins). Mas não vou tomar esse caminho, pois cavaleiros e afins prontamente argumentariam que o cavalo e o gaúcho têm uma histórica relação de cumplicidade, respeito, quiçá de amor; diriam que a palavra “usar” foi, nesse caso específico, mal empregada ou mal entendida (ou as duas coisas). Prefiro, então, deixar de lado as discussões semânticas e partir para os fatos: se é verdade que o gaúcho ama e respeita, entre todos os animais, pelo menos o nobilíssimo cavalo, por que, então, insiste em trucidá-lo, como faz com todos os outros? Não falo nem dos cavalos que serviram de bucha de canhão nas frentes de batalha ao longo dos séculos, carregando sacripantas sanguinários no lombo (pois, como já afirmou o próprio Nico Fagundes, “o cavalo é um fazedor de pátrias”, o que, na prática, quer dizer, tão somente, que o animal foi usado ostensivamente como veículo de guerra). Falo dos muitos cavalos que, a exemplo da galinha do Nico, viram carne de açougue. Sim: o cavalo do gaúcho não morre mais de velhice no fundo do campo, a cabeça voltada para onde nasceu. Os fazendeiros, hoje, estão abastecendo dois frigoríficos do Rio Grande do Sul dedicados, exclusivamente, a abater eqüinos (mais de 40 mil por ano). Os fazendeiros afirmam que a venda de cavalo não é regida por crueldade: eles garantem não se desfazer do animal “garboso”, o que “justifica o milho que come”. Os descartados serão os “velhos ou defeituosos”. O mercado consumidor é, basicamente, Ásia e Europa, pois, ao gaúcho, repugnaria mastigar bifes de um animal de estimação, causaria enjôos churrasquear um símbolo do estado. Explorar e matar, tudo bem; comer, jamais. A muitos conterrâneos meus, tal situação soa absurda. Para mim, é perfeitamente coerente dentro da esquizofrenia moral reinante. Esse é o único tipo de lealdade e franqueza que se pode esperar de comedores de carne agressivos e dominadores.

Para voltar à tônica literária que deu início a esta crônica, concluo com uma frase retirada de um conto chamado O Boi Velho, do livro Contos Gauchescos, de autoria de Simões Lopes Neto (se você ainda não leu esse conto, é hora de ir mais uma vez à livraria):

“Cuê-pucha!… é mesmo bicho mau, o homem!”

http://vista-se.com.br/site/gaucho-macho-e-grosso

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1. Podem ser leais com humanos, mas não com animais. "O homem implora a misericórdia de Deus, mas não tem piedade dos animais, para os quais ele é um deus. [...]" Gautama Buda
2. A Galinha de Babel


Um comentário:

  1. Bah! E agora tchê? O que é que eu faço?
    Eu que sempre gostei de arroz com galinha;
    E galinha de terreiro então... Coisa boa!

    Carne de vaca e de ovelha - mal passada,
    Bah! Mas que coisa que eu acho bem boa!
    O que eu faço se tantas vezes me fartei?

    Eu que os velhos cheios de cachaça...
    Relatarem nos bolichos suas brigas de facão!
    E, desculpe-me, mas eu acho tanta graça!

    Tchê! Tu me perdoa tá... Mas eu já tô perdido!

    Um abraço pra ti!

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