Por que a corneta sul-africana nada acrescenta
ao futebol - e muito menos à cultura
Por Luís Antônio Giron
O ser humano é um animal nominalista. De um instante para cá, a corneta foi rebatizada pelo nome africano de vuvuzela. E todo mundo se entusiasma e só fala disso como se fosse uma novidade absoluta – ou, como dizem os franceses, o “dernier cri”. O brasileiro acha engraçado porque o venerável cornetão, que frequenta os campos de futebol da América Latina desde o início dos anos 70, foi rebatizado com um nome que soa obsceno. No entanto, em castiço étimo zulu, o termo significa algo como “ruído do vuvu” - sendo “vuvu”, a zoada resultante do sopro violento no bocal do instrumento que mede um metro. Em idioma tswala, é chamado “lepatata”, que, imagino, pode ser traduzido como “patada nos ouvidos dos outros é refresco”.
O processo de esquecimento voluntário é curioso. Um programa de televisão chegou a entrevistar um indivíduo que se apresenta como “o criador da vuvuzela”. E o sujeito afirmou que pretende em breve exportar sua invenção ao Brasil. Será a prova de que é possível vender geladeira a pinguim (como ficou esquisito isto em nova ortografia), desde que a palavra seja alterada para algo que pareça qualquer signo que lembre safadeza. Então, meu clamor é o seguinte: por favor, tirem a boca da vuvuzela e deixem os homens de boa vontade assistir ao jogo em paz!
Esse tipo de instrumento [quem quiser, pode pular a aula de história da música e ir diretamente ao próximo parágrafo, cheio de fúria e ruído] é mais antigo que a humanidade. Os troncos ocos de árvore por onde passam os ventos inspiraram os primeiros hominídios a construírem suas próprias trombetaas. As populações dos Alpes utilizavam as trombas como meio de comunicação entre as montanhas – e só depois como item folclórico. Os egípcios, os sumérios, os judeus, os gregos, os vikings, as nações indígenas do Xingu, quase todos os povos antigos usaram berrantes parecidos, para funções ritualísticas, religiosas ou militares. São João cita as trombetas no seu Apocalipse. O sétimo selo revela os sete anjos que sopram solenemente seus instrumentos para anunciar o fim do mundo.
Sopradas por dezenas de milhares de pessoas nos estádios da África do Sul, as trombetas de plástico podem soar ainda mais amedrontadoras que as do septeto angelical, e certamente mais irritantes. Ninguém consegue ficar imune nas transmissões dos jogos desta Copa do Mundo de Futebol por causa das vuvuzelas. Elas oferecem a tortura de uma nota só: um si natural sustentado numa fermata perpétua, num pedal que, à distância, parece não se alterar, mas que, de perto, soa em glisssandos horrorosamente desafinados ou microtonais.
O ruído se impõe com tanta agressividade que muitos jogadores reclamaram que aquilo atrapalhava seu trabalho. Os comentaristas de rádio e televisão também têm se mostrado irritados incomodados – e é até cômico ouvir como a turma da sonoplastia tenta equalizar o som para que a voz dos narradores se faça ouvir acima da barulheira ensurdecedora. Uma tarefa impossível. Eu gosto de ver os jogos com o som da televisão mudo. Prefiro os eufóricos narradores e críticos de rádio, que fornecem uma espécie de fantasia hiperbólica do evento sempre mais ou menos igual. Mas, com os cornetões, soprados aos milhares, já não é possível nem mesmo ouvir os eloqüentes locutores radiofônicos. Ouço aquele zumbido infernal e sem sentido.
Estranhamente, a cultura do politicamente correto conseguiu abafar a indignação dos perturbados pelas vuvuzelas. A Fifa pensou em proibir o uso das cornetas nos estádios, mas o comitê organizador da copa divulgou a decisão de manter os hábitos da população. A federação adota o conceito de cultura como manifestação popular espontânea. O presidente da Fifa, Joseph Blatter, declarou: "Sempre disse que a África tem um ritmo diferente, um som diferente. Não posso evitar as tradições musicais de torcedores em seu próprio país”. O porta-voz do comitê, Rich Mkhondo, disse que elas são um ícone do futebol sul-africano: “Elas fazem parte da história da África do Sul. São uma forma dos espectadores se expressarem e também são usadas por outros adeptos de outras equipes.” O uníssono instalou-se. Mesmo os reclamantes mais severos, como o jogador português Cristiano Ronaldo, mudaram de opinião. “Temos de nos acostumar”, disse em entrevista coletiva, “mesmo que incomodem os jogadores”. Agora todos dizem que é “respeitar a cultura local”.
Ou seja, seremos forçados a aguentar a barbárie ruidosa se impor aos nossos sentidos como se as tais cornetas pudessem figurar como “ícones” das populações autóctones, e não um modismo exagerado e distorcido, copiado dos torcedores sul-americanos – copiados da gente! Não há “expressão” das torcidas, e sim ruído em sua essência mais estúpida. Vamos falar claro: as vuvuzelas não são ícones de coisa nenhuma. Elas não passam de uma triste manifestação do uso deturpado de um brinquedinho idiota. Só atrapalham.
A Fifa elaborou ao longo dos tempos uma política cultural consistente. Mas não mostra a mesma generosidade que ela demonstra em relação às culturas locais para com os pequenos comerciantes em torno dos estádios em que se realizam as partidas da Copa. Todos estão proibidos a abrir suas lojas para proteger os grandes anunciantes. Tocar vuvuzela, sem problemas. Desconfio que a Fifa mantenha um contrato com a fábrica das cornetas. Imagino como a Fifa vai aplicar seus conceitos de multiculturalismo na Copa de 2014 no Brasil. Será que alguns povos indígenas terão “sua cultura local preservada” e até “restaurada”, mesmo se consideramos que um dos traços culturais arcaicos dos índios brasileiros era o canibalismo? Pelo jeito, sim. Nossos estádios abrigarão banquetes colossais, e não venham os chatos condenar a orgia gastronômica. Antropofagia, afinal, também é cultura.
Fonte: Revista Época
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O futebol é, sem dúvidas, animação, agito e energia - faz parte da própria alegria do jogo, o som - mas é muita vuvuzela pra pouco estádio... é preciso um certo equilíbrio ou, então, um limite físico mesmo. Os decibeis e a literal monotonia do estádio com certeza ultrapassam essa linha, que afeta até mesmo os jogadores, que devem mostrar seu maior brilhantismo nessa hora, pois esse é o seu momento. O futebol bonito tem alegria, mas também tem respeito. E não necessariamente um precisa se opor ao outro.
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