sábado, 1 de outubro de 2011

Do Consumo de Carne - Plutarco [Trecho I]

Do Consumo de Carne” (Ou "Sobre Comer Carne")
Título original: On The Eating of Flesh (Περὶ σαρκοφαγίας)

Tradução: Leandro Loan

Fonte (em inglês): Plutarch, Moralia (Vol. XII) - De Seu Carnium - P537
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Plutarch/Moralia/De_esu_carnium*/home.html
http://www.animal-rights-library.com/texts-c/plutarch01.htm


Introdução
por Bill Thayer

[há de se considerar que Bill Thayer em sua introdução não se aprofunda nos argumentos do texto, fazendo um análise superficial e leviana do mesmo]

Estes dois discursos mal recortados, urgindo a necessidade do vegetarianismo, são meros extratos de uma série (ver 996A) que Plutarco escreveu na sua juventude talvez a uma audiência beociana (995E). Apesar da exagerada e calculada retórica, esses fragmentos provavelmente descrevem com fidelidade um comportamento da primeira vida adulta de Plutarco, a pitagórica (ou Órfica) abstenção de alimentos de origem animal. Há poucos traços desse comportamento nas etapas posteriores, mais conhecidas por nós, embora uma passagem revisada em Symposiacs (635E) pareça dizer que, por causa de um sonho, o nosso autor absteve-se de ovos por um longo período. Em “De Sanitate Tuenda” (132A), Plutarco "desculpa" o consumo de carne no terreno onde o hábito “tornou-se uma espécie de segunda natureza não-natural.” A obra aparece, ao todo, um tanto quanto imatura ao lado de the Gryllus e De Sollertia Animalium, mas o texto é tão pobre que isso pode não ser culpa do autor. De fato, o responsável pelos cortes do texto, ao introduzir interpolações estúpidas (ver especialmente 998A) e até um trecho de um trabalho totalmente diferente (994B D), pode bem ter alterado as palavras de Plutarco em vários outros lugares onde não temos os meios para detectá-lo. Porfírio (De Abstinentia, III.24) diz que Plutarco atacou os Estóicos e os Peripatéticos em vários livros; neste próprio, a polêmica anti-estóica apenas começava (999A) quando de repente a obra se perde (desaparece). Para uma abordagem mais completa, o leitor deve voltar para os dois diálogos precedentes. Interessante notar que Shelley considerou estes dois fragmentos como sendo interessantes. No oitavo livro de Queen Mab (versos 211 ff.) nós lemos:

Não mais agora
Ele degola o cordeiro que o olha na face
E horrivelmente devora sua carne mutilada,
A qual, ainda vingando a lei ferida da Natureza,
Despertou todos os tipos de pútridos humores em seu corpo,
Todas as paixões malévolas, e toda crença em vão, . . .
Os germes da miséria, morte, doença, e crime.

A essa passagem, o poeta anexou, à sua própria maneira, uma longa nota a qual findou-se com quatro citações do nosso ensaio em grego, não traduzido (uma homenagem ao público de sua época, poder-se-ia supor). Essa nota foi subsequentemente republicada como A Vindication of Natural Diet (1813), omitindo o Grego; e no mesmo ano ele escreveu a Thomas Hogg que ele havia “traduzido dois Ensaios de Plutarco, Περὶ σαρκοφαγίας. “ Mas isso havia se perdido; Não havia, pelo menos, sido encontrados entre os materiais de Shelley não-publicados na Biblioteca de Bodleian. Este é um de dezoito trabalhos da obra recebida de Plutarco que não aparecem no Catálogo de Lamprias. Tal fato não é, entretanto, algo para ser colocado contra sua genuinidade, desde que o próprio Symposiacs não se encontra aqui.

Sobre Comer Carne: I
Ploútarkhos

[Trecho I]

1. Você me pergunta então por qual motivo Pitágoras se absteve de comer carne. Pela minha parte, imagino se por acidente ou em qual estado de mente ou espírito o primeiro homem tocou em sua boca sangue derramado, e alcançou em seus lábios a carne de uma criatura morta, ele que preparou mesas de cadáveres podres, corpos inanimados e aventurou-se em chamar de comida e alimento as partes que há pouco berraram e choraram, andaram e viveram. Como seus olhos poderiam tolerar a matança quando gargantas eram cortadas, peles esfoladas, e membros eram arrancados um por um? Como seu nariz pôde suportar o odor? Como a sordidez não ofendeu seus sentidos, que fizeram contato com a ferida alheia e sorveu a suco e a seiva de ferimentos mortais?

As peles tremeram; e sobre os espetos a carne berrou,
Tanto cozida quanto crua; a voz do gado era ouvida.

Embora isso seja uma invenção e um mito, essa dieta é verdadeiramente espantosa – quando um homem consegue desejar a criatura que ainda berra, dando instruções sobre quais animais nós devemos comer quando ainda estão procriando, e encomendando vários métodos de tempero para assá-los e servi-los em mesas. Deveríamos buscar aquele que inicialmente começou tudo isso, ao invés de buscar aquele que muito posteriormente desistiu [Pitágoras].

2. Por certo, assim como para aqueles que primeiramente se aventuraram no consumo de carne, é bastante provável que a inteira razão de seus atos foi a escassez e a necessidade de outros alimentos*; porque não é plausível que suas vidas desregradas, regadas a luxos extravagantes e infantis, ou seu capricho crescente e arbitrário através de uma excessiva variedade de provimentos, os trouxeram a tacanhos prazeres perversos, contra a Natureza. Sim, se a esse momento estivessem os seus sentidos e vozes recuperados, com certeza denotariam:

[tradução alternativa: Ou declararíamos que a razão para aquele que primeiramente instituiu ou consumo de carne foi a necessidade de sua pobreza? Não foi enquanto eles passavam seu tempo em desejos desregrados, nem quando eles tiveram suas necessidades em abundância que, após a indulgência em prazeres perversos e selvagens, recorreram a tais práticas. Se, a esse momento, estivessem os seus sentidos e vozes recuperados, certamente denotariam: (...) ]

“Oh! abençoados e amados pelos Deuses, vocês que agora vivem, mas que época do mundo a qual caíram, que compartilham e aproveitam da abundância farta das coisas boas! Que plenitude de vida brota ao seu dispor! Que videiras frutíferas apreciam! Que riqueza plena vocês tiram dos campos! Que guloseimas das árvores e plantas vocês podem colher! Podem deleitar-se e bastar a si mesmos, sem se poluírem. Enquanto que, para nós, caímos sobre a mais sombria e aterrorizante parte do tempo na qual estivemos expostos a múltiplos e inextrincáveis anseios e necessidades. Até o momento, o denso ar escondia o céu de nossa vista, e as estrelas estiveram borradas de fogo, umidade e violentos fluxos de vento. Ainda, o sol não estivera fixado a um curso certo e preciso, assim, para distinguir manhãs e noites; nem ele os trouxera à vida novamente, coroando-lhes com grinaldas das mais frutíferas safras. A terra foi também castigada pelas inundações de rios truculentos; e grande parte deformada por charcos, completamente selvagem, em decorrência de pântanos profundos, florestas inférteis e bosques. Não havia então nenhuma produção de frutas domésticas, nem quaisquer instrumentos de arte ou invenções sagazes. E a fome não daria trégua, nem existiam sementes de qualquer tipo esperando a anual temporada de semeadura. O que seria se, contrários à natureza, fizéssemos uso da carne das bestas quando até a lama era comida e as cascas de árvore eram devoradas, e quando era considerada uma coisa boa encontrar tanto um broto de grama ou a raiz de alguma planta! Mas quando eles tivessem por acaso experimentado ou comido uma bolota de carvalho, eles dançariam com grande alegria sobre essas árvores, chamando-as de “fontes da vida”, “mãe” ou “protetora”. E este foi o único festival que aqueles tempos conheceram; todo o resto era um misto de angústia e terrível tristeza. Mas que tipo de voracidade e delírio os levaram, entretanto, nos dias felizes de agora, a poluírem a si mesmos com sangue? Vocês, que tem tanta abundância de coisas necessárias à sua subsistência? Por que ultrajais a boa face da Terra como se esta fosse incapaz de lhes manter? Por que profanar o soberano criador das leis, Ceres, e envergonhar o gentil e amável Baco [Dionísio], senhor das videiras cultivadas, o gracioso, como se não eles não estivessem doando o bastante? Não estão envergonhados de misturar frutas doces com sangue e morte? Vocês chamam as serpentes, panteras e leões de animais selvagens, mas vocês mesmos, por sua própria matança infiel, não deixam qualquer espaço para ultrapassarem-vos na crueldade. O que eles matam é sua nutrição ordinária, enquanto que, para vocês, é um aperitivo, apenas.

3. Porque não comemos leões nem lobos, como forma de vingança [ou “defesa”]; porém os deixamos ir e capturamos aqueles indefesos animais domésticos, os quais não têm dentes nem ferrões para nos morder, e os assassinamos; os quais, e que Jove [Júpiter] nos ajude, a Natureza parece haver produzido apenas por sua própria beleza e graciosidade.

4. Mas nada nos desconcerta, seja a beleza de suas cores, seja o charme musical de suas vozes, seja a pureza de seus hábitos ou a discrição e incomum inteligência que podemos encontrar nesses seres; Não, por um simples pedacinho de carne, privamos uma alma do sol e da luz, e daquela proporção de vida e tempo a qual todos nascemos para desfrutar. E então fantasiamos que as vozes que proferem e nos gritam não são nada menos que sons e barulhos inarticulados, não repetidas e diversas súplicas, preces por clemência nem pedidos de misericórdia de cada um, como se estivessem nos dizendo: “Eu contesto não tua necessidade (se é que existe) mas teu desejo. Mate-me para seu sustento, mas não me arrebata por uma melhor refeição.” Ó, horrível crueldade! É uma cena terrível ver a mesa dos ricos postada à sua frente, estes, que mantém cozinheiros e garçons para fornecer-lhes cadáveres diariamente; porém é muito mais chocante ver o que se leva no final, porque a sobra é muito maior do que o ingerido. Então as bestas morreram por nada! Há outros, tão assustados pelo que foi postado à mesa, que se recusam a cortar a comida quando os pratos são servidos. Embora estejam poupando os mortos, eles não pouparam os vivos.

5. Nós declaramos, então, que é absurdo para eles dizerem que a prática de comer carne é baseada na Natureza. Porque o humano não é naturalmente carnívoro, isso é óbvio, em primeiro lugar, pela estrutura de seu corpo. O formato de um homem não é de nenhum modo similar ao das criaturas que foram feitas para comer carne: não tem bico de falcão, garras afiadas, dentes resistentes, estômago forte ou fluidos vitais quentes o suficiente para digerir e assimilar a pesada dieta da carne. É deste importante fato, a uniformidade dos nossos dentes, o tamanho das nossas bocas, a maciez de nossa língua, nossa posse de líquidos vitais tão inertes para digerir carne, que a Natureza desaprova nosso consumo dela. Se você declarar que foi naturalmente desenhado para essa dieta, então, primeiramente, mate o que irá comer. Faça isso, entretanto, apenas com seus próprios meios, sem o auxílio de clavas, facas ou machados de qualquer tipo, como lobos, ursos e leões o fazem. Então você renderá um boi com seus dentes, pegará um javali com sua boca, rasgará um cordeiro ou coelho em vários pedaços, cairá sobre ele e o comerá enquanto ainda respira, como os animais fazem. Mas se você quiser esperar que seu “alimento” morra, se você tiver escrúpulos em apreciar uma carne enquanto sua vida ainda estiver presente, por que continua, contrário à natureza, a comer o que está vivo?*

[tradução alternativa: Mas se você prefere ficar e esperar que seu alimento morra, e se
acha difícil forçar uma alma a deixar seu corpo, por que então o faz contra a natureza?]

Até quando está sem vida e apagada, no entanto, ninguém come a carne do jeito que está. Homens fervem-na e assam-na, alterando-a com o fogo e remédios, reformulando, modificando e suavizando com incontáveis condimentos, o sabor da morte para que assim o paladar possa ser enganado e aceitar o que lhe é estranho.

Certamente foi uma expressão espirituosa de um lacedemoniano, que, tendo comprado um pequeno peixe em uma estalagem, entregou a seu senhorio para ser preparado; e, assim que este pediu queijo, vinagre e óleo para fazer o molho, ele respondeu: “se eu os tivesse, não teria comprado o peixe”. Mas ficamos tão perdidos em nossa luxúria, que denominamos a carne como comida suplementar; e então precisamos de “suplementos” para a própria carne, misturando assim óleo, vinho, mel, pasta de peixe, vinagre, e temperos sírios e árabes, como se estivéssemos de fato embalsamando um cadáver para o enterro. O fato é que a carne é tão amaciada, tão dissolvida, e de um certo modo tão pré-digerida, que se torna difícil para a digestão lidar com ela; e, se a digestão perde batalha, a carne nos afeta com dores terríveis e indigestões malignas.

6. Diogenes aventurou-se a comer um polvo cru de forma a pôr fim na inconveniência de cozinhar comida. No meio de uma grande multidão, ele escondeu sua cabeça e, assim que trouxe a carne em sua boca, disse: “É por você que estou arriscando minha vida.” Deus do céu, um risco extraordinário! Assim como Pelopidas, pela liberdade dos Tebanos, e Harmódio e Aristogíton, para os Atenienses, esse filósofo arriscou sua vida lutando contra um polvo – para brutalizar nossas vidas!

Note que o consumo de carne não é apenas fisicamente contra a natureza, mas também nos faz espiritualmente grosseiros e brutos, por conta de sua saciedade e excesso. Porque é bem sabido por muitos, que o vinho e a indulgência na carne pode fazer o corpo forte e vigoroso, mas torna, entretanto, sua alma fraca e débil. E para eu não ofender os atletas, tomarei meu próprio povo como exemplo. É fato que os Atenienses costumem chamar os Beocianos de “cabeças-de-bagre”, insensíveis ou tolos, precisamente porque nos recheamos. “Esses homens são porcos”, diz Pindar. Menander nos chama de “aqueles da boca grande”; De acordo com Heráclito, “uma alma leve é mais sábia”. Jarras vazias fazem mais barulho quando estouram, mas as cheias não ressoam ao estrondo. Finos objetos de bronze passam o som de um para o outro em um círculo até que você reduza e apague o som com sua própria mão. Ainda, o olho, quando inundado com excesso de umidade, fica fraco e debilitado para sua função perfeita. Quando examinamos o sol através de uma atmosfera obscura e de neblinas de grossos vapores, não enxergamos claramente, mas, ao contrário, submerso e nebuloso, com raios elusivos. Da mesma forma, portanto, o corpo é tumultuado, entupido e sobrecarregado com comidas impróprias. O lustre e a luz da alma inevitavelmente aparecem borrados e confusos, em um aberração inconstante desde que à alma falta o brilhantismo e a intensidade para penetrar os minúsculos e complexos instantes da vida.

7. Mas apesar dessas considerações, você não encontra aqui um maravilhoso motivo para treinar a responsabilidade social? Quem poderia desestimular um ser humano quando ele se encontra tão gentil e humanamente disposto perante às outras criaturas? Há dois dias atrás, em uma discussão, citei uma expressão de Xenocrates, em que os Atenienses puniram um homem que havia acabado de esfolar um carneiro enquanto este ainda estava vivo; ainda assim, como eu penso, aquele que tortura uma criatura viva não é pior do que aquele que tira sua vida, assassinando-a. Mas, parece que somos mais sensíveis àquilo que vai contra os costumes do que o que vai contra a Natureza. Ali, então, fiz meu discurso de uma forma popular, a todos. Ainda hesito, entretanto, em iniciar uma discussão sobre o propósito ao qual sustento minha fala, princípio este grande, misterioso e incrível, como Platão diria, para as mentes comuns e mortais. Como um timoneiro hesitaria mudar seu curso em uma tempestade, ou um comediante, no momento em que tira o deus de sua máquina, hesita no meio da peça. No entanto, talvez não seja inadequado definir o tom e anunciar o tema, citando alguns versos de Empedócles. ... Com essas linhas, este quis dizer, apesar de não diretamente, que as almas humanas estão aprisionadas em corpos mortais como uma punição pela morte e o consumo da carne animal, e do canibalismo em si. Essa doutrina, entretanto, parece até ser mais antiga, como as estórias nos contam sobre o sofrimento e o desmembramento de Dionísio, os ultrajantes ataques dos Titãs sobre ele, assim como a punição a estes com jatos de raio, pelo simples fato de terem experimentado seu sangue – tudo isso é um mito pelo qual, em seu significado interior, tem a ver com renascimento. Porque, para as faculdades que, em nós, são irresponsáveis, desregradas ou violentas, e que não vêm dos deuses mas apenas dos espíritos maus, os antigos lhes deram o nome de Titãs, ou seja, aqueles que são/foram punidos e sujeitos à correção...

[continua no Trecho II]

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