sábado, 7 de agosto de 2010

A Velha Ordem Mundial

Trecho do livro “Homo Ludens”, de Johan Huizinga. Capítulo Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultural.

           [...] Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. Talvez este fator estético seja aquele impulso de criar formas ordenadas que penetra o jogo em todos os seus aspectos. As palavras que empregamos para designar seus elementos pertencem quase todas à estética. São as mesmas palavras com as quais procuramos descrever os efeitos da beleza: tensão, equilíbrio, compensação, contraste, variação, solução, união e desunião. O jogo lança sobre nós um feitiço: é “fascinante”, “cativante”. Está cheio das duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia.

           O elemento da tensão, a que acabamos de nos referir, desempenha no jogo um papel especialmente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa “vá” ou “saia”, pretende “ganhar” à custa de seu próprio esforço. Uma criança estendendo a mão para um brinquedo, um gatinho brincando com um novelo, uma garotinha jogando bola, todos eles procuram conseguir alguma coisa difícil, ganhar, acabar com uma tensão. O jogo é “tenso”, como se costuma dizer. É este elemento de tensão e solução que domina em todos os jogos solitários de destreza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, os jogos de armar, as paciências, o tiro ao alvo, e quanto mais estiver presente o elemento competitivo mais apaixonante se torna o jogo. Esta tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas competições esportivas. Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua “lealdade”. Porque, apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo.

           Por sua vez, estas regras são um fator muito importante para o conceito do jogo. Todo jogo tem suas regras. São estas que determinam aquilo que “vale” dentro do mundo temporário por ele circunscrito. As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão. Uma vez, de passagem, Paul Valéry exprimiu uma idéia das mais importantes: “No que diz respeito às regras de um jogo, nenhum ceticismo é possível, pois o princípio no qual elas assentam é uma verdade apresentada como inabalável”. E não há dúvida de que a desobediência às regras implica a derrocada do mundo do jogo. O jogo acaba: O apito do árbitro quebra o feitiço e a vida “real” recomeça.

           O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um “desmancha-prazeres”. Este, porém, difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmancha-prazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo, denuncia o caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros. Priva o jogo da ilusão – palavra cheia de sentido e que significa, literalmente, “em jogo” (de inlusio, illudere, ou inludere). Torna-se, portanto, necessário expulsá-lo, pois ele ameaça a existência da comunidade dos jogadores. A figura do desmancha-prazeres desenha-se com mais nitidez nos jogos infantis. A pequena comunidade não procura averiguar se o desmancha-prazeres abandona o jogo por incapacidade ou por imposição alheia, ou melhor, não reconhece sua incapacidade e acusa-o de falta de audácia. Para ela, o problema da obediência e da consciência é reduzido ao do medo ao castigo. O desmancha-prazeres destrói o mundo mágico, portanto, é um covarde e precisa ser expulso. Mesmo no universo da seriedade, os hipócritas e os batoteiros sempre tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres: os apóstatas, os hereges, os reformadores, os profetas e os objetores de consciência.


Todavia, freqüentemente acontece que, por sua vez, os desmancha-prazeres fundam uma nova comunidade, dotada de regras próprias. Os fora da lei, os revolucionáris, os membros das sociedades secretas, os hereges de todos os tipos têm tendências fortemente associativas, se não sociáveis, e todas as suas ações são marcadas por um certo elemento lúdico.”

HUIZINGA, Johan, 1872-1945. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura / Johan Huizinga ; [tradução João Paulo Monteiro] – São Paulo : Perspectiva, 2008. – (Estudos / dirigida por J. Guinsburg). Pg. 13-15

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