segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Do Consumo de Carne - Plutarco [Trecho II]

Do Consumo de Carne” (Ou "Sobre Comer Carne")
Título original: On The Eating of Flesh (Περὶ σαρκοφαγίας)

Tradução: Leandro Loan

Fonte (em inglês): Plutarch, Moralia (Vol. XII) - De Seu Carnium - P537
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Plutarch/Moralia/De_esu_carnium*/home.html
http://www.animal-rights-library.com/texts-c/plutarch01.htm



 [Trecho II]

A razão nos invoca agora com novas idéias e um novo desvelo para ingressarmos de novo em nosso discurso de ontem sobre o consumo de carne. É, de fato, uma tarefa difícil, como Cato uma vez disse, engendrar uma disputa contra a barriga dos homens, que não têm ouvidos [nem olhos], desde que a maioria já bebeu daquela bebida de costume, como é próprio de Circe.


Misturando dores e espasmos, truques e lágrimas;


nem é fácil retirar o anzol de comer carne, pregado como está e embebido no prazer da luxúria. E, como os Egípcios, que extraem as vísceras dos mortos e abrem seus corpos à vista do Sol e, então, jogam-nas fora como se fossem a causa de cada pecado que a pessoa cometeu, seria interessante extirparmos nossa gula e derramamento de sangue para nos purificarmos pelo resto da vida, desde que não é exatamente a nossa barriga a responsável pela corrupção da morte; somos poluídos por nossa incontinência. Ainda que, pelo amor de Deus, seja impossível nos desvencilharmos do erro porque já estamos há tempos habituados a ele, tenhamos pelo menos vergonha dos nossos atos. Que se coma por fome, não por luxúria. Que matemos um animal, mas o façamos com tristeza e piedade, nem os abusando nem os atormentando, como muitos hoje em dia estão acostumados a fazer, colocando espetos em brasa no corpo dos suínos para, com o ferro, emulsionar o sangue e, enquanto este circula pelo corpo, possa tornar a carne delicada e macia. Outros pulam sobre o úbere das porcas grávidas e os chutam, para que, quando o sangue, o leite e a coagulação estiverem misturados (que Zeus os purifique!) e os fetos estiverem ao mesmo tempo destruídos no momento do nascer, eles possam comer as partes inflamadas das criaturas. Ainda há outros que costuram os olhos de grous e cisnes, trancando-os na escuridão para serem engordados e, então, condimentam sua carne com monstruosas misturas e temperos apimentados.

2. A partir dessas práticas, é claramente evidente que não é para nutrição, necessidade ou carência, mas por mera luxúria, insolência ou gula que transformaram esse hábito desregrado em prazer. Então, como mulheres insaciáveis em busca pelo gozo, a sua lascívia experimenta de tudo, se perde, e explora toda a gama de libertinagem até que finalmente se acaba em práticas inomináveis, assim, a intemperança em comer vai além do necessário e recorre à crueldade e desordem para dar variedade ao apetite. Para os sentidos, uma vez que abandonam suas medidas naturais, simpatizam uns com os outros pelos seus destemperos, e são atraídos ao mesmo consenso e intemperança. Assim um ouvido corrompido primeiramente escutou música debochada, e as notas suaves e efeminadas que provocam toques indecentes e lascivas cócegas. Essas coisas ensinaram o olho a não se deliciar em danças pírricas, na gesticulação das mãos, ou em elegantes pantomimas, nem em estátuas e quadros refinados; mas para considerar o abate e a morte da humanidade, e as feridas e os duelos, assim como os mais suntuosos espetáculos. Deste modo, mesas desregradas são acompanhadas por copulações destemperadas, músicas desarmônicas são seguidas por vergonhosos deboches, espetáculos bárbaros acompanham canções descaradas, a insensibilidade e crueldade em direção à humanidade é seguida por exibições selvagens nas casas de teatro. Foi por esta razão que o divino Licurgo em seus Três Livros da Lei deu ordens para que as portas e arestas da casa dos homens fosse feita com serra e machado, e que nenhum outro instrumento seria trazido a qualquer outra casa. Não que intencionasse declarar guerra contra brocas e níveis, e outros instrumentos de trabalho mais refinado, mas porque ele sabia muito bem que com essas ferramentas ninguém nunca traria para sua casa um sofá dourado, e ninguém nunca tentararia trazer a um chalé pequeno mesas de prata, carpetes de púrpura ou pedras preciosas; mas, um jantar caseiro e um almoço simples devem acompanhar tal casa, mesa e copos. O início de uma dieta viciosa é seguida por toda sorte de luxúria.

Como um potro desmamado ao lado de sua mãe corre.

3. E que tipo de refeição não é cara? Aquela em que nenhum animal foi posto a morte. Devemos considerar uma alma um custo pequeno? Não chegarei a dizer que bem poderia ser a vida [reencarnada] de sua mãe, ou de seu pai, ou de um amigo ou de uma criança, como Empedocles uma vez declarou; mas daquele participante do sentimento, da visão, da escuta, da imaginação e do intelecto; que cada animal recebeu da Natureza para a aquisição do que lhe é agradável, e para a repulsa do que lhe desagrada. Considere isso você, agora, que tipo de filósofos serviriam melhor para nos humanizar e civilizar: aqueles que nos sugerem comermos nossos próprios filhos e amigos e pais e esposas, depois de sua morte, ou Pitágoras e Empédocles, que tentaram nos habituar a agir justamente com as outras criaturas do planeta? Você ridiculariza o homem que se abstém de comer uma ovelha. Mas deveríamos nos privar de rir, diriam eles, quando vemos vocês cortando pedaços de um pai morto ou de uma mãe e os enviando para amigos distantes e convidando as pessoas presentes a comerem livremente e cordialmente os restos de suas carnes? Mas talvez cometemos um pecado quando tocamos esses livros sem lavarmos nossas mãos e nossos rostos, nossos pés e nossos ouvidos – a menos, por Deus, que seja uma purificação desses próprios membros falar sobre tal assunto dessa maneira, “lavando”, como diria Platão, “a salmoura dos ouvidos de alguém com a água fresca do discurso”. Se alguém deveria comparar esses dois volumes de livros e doutrinas, o primeiro pode servir de filosofia para os Scitios e Sodianos e os Capas Negras, cujas estórias contadas por Heródoto não tiveram crédito; mas os preceitos de Pitágoras e Empédocles foram as leis para os Gregos antigos, ao longo de sua dieta de trigo..... [texto recortado]

4. Quem então foram os autores da seguinte opinião?

O primeiro a forjar a espada da estrada assassina,
E o primeiro a comer a carne de um boi no arado

Este é o caminho, sem dúvidas, no qual tiranos começaram seu trajeto de massacres sanguinolentos. Assim como, por exemplo, em Atenas, abateram inicialmente o pior dos sicofantas e, depois dele, colocaram à morte um segundo e depois um terceiro. Após isso, estando acostumados ao derramamento de sangue, pacientemente viram Niceratus, o filho de Nicias, e seu general Theramenes e Polemarchus, o filósofo, sofrerem lentamente até a morte. Da mesma forma, no começo era um animal selvagem e perigoso que era comido, então um pássaro ou peixe que tinha sua carne despedaçada. E, então, quando nossos instintos assassinos experimentaram sangue e cresceram a partir da morte dos animais selvagens, avançaram para os bois e para as ovelhas bem-comportadas, e para os galos de casa; Pouco a pouco dando aresta firme para nosso apetite insaciável, avançamos para guerras e massacres de seres humanos. Ainda, se alguém uma vez demonstrar que as almas em renascimento fazem uso de corpos comuns e que o que hoje é racional se reverte em irracional, e que o que hoje é selvagem se transforma em doméstico, e que a Natureza muda tudo e atribui novas moradas,

Vestindo almas com diferentes casacos de carne;

isso não deterá o elemento desregrado naqueles que já adotaram a doutrina de implantar indigestão e doenças em nossos corpos, e de perverter nossas almas para uma desordem ainda mais cruel e insana, assim que nos livrarmos do hábito de entreter nossos convidados ou de celebrar um casamento ou amizade a partir do derramamento de sangue?

5. Embora, se o argumento da migração das almas de corpos em corpos não for demonstrado até o ponto de completa aceitação e crença, a própria incerteza deveria nos preencher de atenção e medo. É como se, em um ataque noturno, tivesse você desembainhado sua espada e estivesse prestes a se precipitar sobre um homem caído, cujo corpo estivesse escondido sobre a própria armadura e você escutasse alguém relembrando-o que não tinha tanta certeza, mas que acreditava que a figura prostrada era do seu filho ou do seu irmão ou de seu pai ou companheiro de exército. Qual seria o melhor caminho: aprovar a falsa suspeita e poupar seu inimigo como amigo, ou negligenciar uma autoridade incerta e matar seu amigo como seu inimigo? O último caminho seria declarado como chocante.

Considere a famosa Merope na tragédia, que, levantando uma machadinha contra o próprio filho, o qual ela acreditava ser o assassino do mesmo, disse:

E este golpe que lhe dou é ainda mais custoso;

Que agitação ela causa no teatro, trazendo todos a seus pés, em horror, ao livrar-se do homem que a tenta impedir, se preparando para ferir o jovem. Agora, suponha que um homem estivesse ao seu lado dizendo: “Ataque! é seu inimigo,” e outro, do outro lado dizendo: “Espere! é seu filho”; qual seria a maior injustiça, impedir a punição de um inimigo por causa do filho, ou abater uma criança sob o impulso da raiva contra um adversário? Em um caso, no entanto, em que não é nem ódio, nem raiva, nem auto-defesa e nem medo por nós mesmos que nos induz a matar, mas o simples motivo do hedonismo, e a vítima permanece ali, sob nosso poder de escolha, com o pescoço inclinado, e um de nossos filósofos diz: “Mate-a! É apenas uma besta.” E outro clama: “Espere, e se houver uma alma de um ente querido ou de um amigo dentro dele?” – Bons deuses! Haveria o mesmo perigo se eu me recusasse a comer carne, como se eu por vontade e fé matasse meu próprio filho ou outro amigo?

6. O modo de pensar dos estóicos sobre o tema do consumo da carne é de maneira alguma igual ou coerente a eles. Por que qual é grande “tensão” entre suas barrigas e cozinhas? Por que, estes, que associam o prazer ao feminino e que o denunciam como nem sendo algo bom nem preferível, ou como nem sendo um “princípio avançado” nem algo “comensurado com a Natureza”, de uma hora para outra se tornam advogados zelosos do prazer? Seria certamente uma conseqüência racional de sua doutrina que estes, ao banir perfumes e bolos de seus banquetes, devessem ser muito mais aversos a sangue e carne. Agora, como se quisessem reduzir sua filosofia a seus próprios diários, diminuem as despesas de seus jantares em questões desnecessárias, mas a parte desumana e cruel de suas despesas não é incomodada. “É claro”, dizem eles, “nós humanos não temos nenhum pacto de justiça para com os animais irracionais”. Nem teria você, alguém poderia replicar, qualquer tipo de pacto com o perfume ou com doces exóticos, igualmente. Abstenha-se de animais também, se está expelindo tudo o que for desnecessário e inútil.

7. Vamos considerar, portanto, se devemos ou não justiça aos outros animais não-humanos; mas vamos fazê-lo sem artifícios ou sofismos, fixando nossa atenção em nossas próprias emoções, conversando como seres humanos e pesando e analisando cada questão.   . . .

[O resto do manuscrito está perdido, se um dia foi completo]


Trecho I  - Tradução: Leandro Loan

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